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Uma das melhores histórias do rock brasileiro é como Chorão saiu de uma pista de skate de Santos para virar o último grande ídolo do gênero no Brasil. A ascensão do cantor com uma linguagem direta e composições marcantes é bem contada no novo documentário “Chorão: Marginal alado”.
Mas há outra história igualmente fascinante e importante para o rock brasileiro: como Chorão entrou em conflitos que acabaram implodindo o próprio sucesso e colocou a banda com pista livre para o estrelato num caos do qual nem ele deu conta.
O documentário conta com a família e os amigos, incluindo seu ex-advogado, para fazer um retrato íntimo. Mas muitos conflitos são relevados nas entrevistas como fruto de “personalidade forte” ou de uma “carapuça” bruta sob interior sensível. O produtor Rick Bonadio simplifica mais: “roqueiro é assim”.
O G1 conversou com outras pessoas e procurou registros que dão relatos mais detalhados sobre as brigas em três campos.
Mas os relatos mostram que os problemas iam além disso. Em todos os casos, o cantor entrava sem razão clara em situações duras, que dificultavam sua própria vida, mas eram amenizadas pelo carisma e a força das músicas.
Incrivelmente, ele acabou saindo na capa da revista, fazendo as pazes com colegas e até ganhando ações judiciais improváveis. Chorão era o maior inimigo dele mesmo, e a briga entre o talento e a destruição era acirrada. Leia os casos:
O fórum da Barra Funda, em São Paulo, guarda um documento histórico do rock do Brasil: a disputa judicial entre Chorão e Marcelo Camelo, vocalista dos Los Hermanos.
Marcelo Camelo em reportagem do ‘Fantástico’ em 2004 sobre briga com Chorão — Foto: Reprodução / TV Globo
Em julho de 2004, durante um voo das duas bandas para o festival Piauí Pop, em Teresina, o líder do Charlie Brown reclamou de críticas que os Los Hermanos faziam à música dele na imprensa.
Na escala, no aeroporto de Fortaleza, aconteceu a agressão a Camelo: uma cabeçada no nariz e um soco no olho. Chorão alegou que também foi ameaçado.
Foram dois processos. No Rio, Camelo pediu R$ 250 mil por danos morais e materias, mais R$ 7.560,76 de despesa médica. No segundo, no Tribunal de Justiça de SP, a banda pediu R$ 43 mil para compensar cachês perdidos de dois shows desmarcados por causa da cirurgia que ele teve que fazer.
A acusação argumentou que a agressão causou “sério dano à imagem do autor (…) cuja preocupação é passar para seu público, constituído na sua maioria de jovens, uma mensagem de paz e harmonia”. A letra de “O vencedor”, dos Los Hermanos, foi incluída pela acusação como prova disso no processo.
Para dar um exemplo da “paz” de Camelo, a acusação incluiu os versos: “Eu que já não sou assim / Muito de ganhar / Junto as mãos ao meu redor / Faço o melhor que sou capaz / Só para viver em paz”.
A primeira decisão deu vitória ao autor de “O vencedor”, mas diminuiu a indenização para R$ 10 mil, mais o custo do tratamento. Chorão recorreu e teve dois triunfos: reduzir a pena para R$ 2,5 mil e metade das despesas, e a declaração de culpa concorrente – ou seja, de que os dois causaram a briga.
A segunda decisão foi do desembargador Bernardo Garcez. Chorão pagou cerca de R$ 6,3 mil reais em 2008, disse ao G1 o advogado de Chorão, Maurício Cury (que foi amigo de infância do músico e é um dos principais entrevistados do novo documentário).
Chorão agride Marcelo Camelo no aeroporto de Fortaleza
“É completamente incabível que um julgador tenha como reação de um ato uma agressão física, ser réu em uma ação indenizatória em virtude dessa agressão e ainda assim julgar em grau de recurso caso semelhante”, disse a parte de Camelo. Mas a decisão foi mantida.
Até a morte, a defesa Chorão tentava cobrar do Los Hermanos os honorários do processo de SP, de R$ 7.171,92 (mais que a indenização que ele pagou no Rio).
Em 2015, foi finalmente estipulado o valor da causa que deveria ser pago ao advogado de Chorão: R$ 12.127,84, com mais outra correção monetária em seguida de R$ 2.111,48. Ou seja: além do olho roxo, Camelo saiu no prejuízo financeiro.
A briga com Champignon, que morreu seis meses depois de Chorão, não ficou só no palco e nos camarins. Durante o período de separação entre 2005 e 2008, o vocalista levou a disputa à justiça.
Champignon deu, em junho de 2005, uma entrevista à revista “Jovem Pan”, em que dizia que a saída dos músicos da banda não aconteceu só por “divergências musicais”, como dizia o vocalista, mas por “desentendimento com o empresário, e o Chorão ‘comprou a dele'”.
O baixista também ficou magoado pelas declarações do cantor de que ele fazia tudo na banda. “Ele falou no Faustão que faz 100% de tudo. Isso é desrespeito com o Marcão, comigo e com o Pelado”, ele afirmava.
Chorão entrou com um processo pedindo uma multa de R$ 100 mil caso o baixista continuasse a falar da banda. Em 26 de janeiro de 2006, ele foi atendido, mesmo que com um valor menor.
O juiz determinou “a proibição de os réus divulgarem e concederem entrevistas que possam denegrir a honra, a imagem e a boa fama do autor, a respeito do término da banda Charlie Brown Jr, proibindo os réus, também, de divulgarem fitas, gravações, documentos e contratos que envolvam quaisquer dos ex-integrantes da banda e o autor, que tenham por finalidade denegrir a honra, a imagem e a boa fama do autor, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 para cada um (a decisão incluía Champignon e o baterista Renato Pelado)”.
Em 2007 eles entraram em um acordo, que não é descrito no processo, mas que extinguiu a disputa. Champignon só teve que pagar R$ 3.266,67 pelas custas do processo ao advogado de Chorão, Maurício Cury.
Todo fã de Charlie Brown conhece a cena em que Chorão humilhou Champignon no palco em 2012, quando o baixista voltou para a banda. Ele diz que o colega deveria “ficar muito grato” por ter sido aceito de volta.
Chorão diz ter tirado o microfone de Champignon para evitar que o baixista falasse “um monte de mentira”. “O cara toca pra caralho, mas enganou vocês”, diz ao público. “Não desejo mal nenhum pra ele, mas é assim…” Chorão afirma: “Cê voltou por causa de dinheiro”.
Vocalista Chorão (à direita) dá bronca em baixista Champignon durante show do Charlie Brown Jr. neste sábado (8) — Foto: Reprodução/YouTube
Ele ironiza dizendo que Champignon é “anjo”. “Ele anda com nove mil anjos”, diz o vocalista, em referência à banda que o baixista integrou após a saída do Charlie Brown, Nove Mil Anjos, com Júnior, irmão de Sandy. “Champignon, cê é o cara mais honesto do Brasil”, ironiza Chorão.
Não foi o único xingamento a um colega durante um show, diante dos fãs.
O baterista André Luís Ruas, o Pinguim, tocou no Charlie Brown Jr. entre 2005 e 2008. Ao sair, pediu R$ 3,9 milhões de indenização alegando vínculo empregatício.
Ele apontava também “insalubridade”, por shows com som alto que pode causar danos auditivos. O juiz não considerou o vínculo e Pinguim perdeu a ação em 2010.
André Ruas, o Pinguim, é ex-baterista do Charlie Brown Jr. — Foto: Ivair Vieira Jr/G1
Outra ação, por danos morais, foi aberta após um show em 2009, em que Chorão falou no palco: “Tem um maluco que saiu da banda recentemente e tá processando porque falou que ficou surdo de tanto rock’n roll, não sei se é verdade isso”. Ele incentiva o público a fazer barulho “pra neguinho ver que o bagulho é alto mesmo”. Depois, grita: “Surdo é o c*, p* na sua b*, filho da p*”.
No dia 4 de março de 2013, foi marcada para maio do mesmo ano uma audiência de conciliação para tentar resolver o processo de danos morais de R$ 500 mil, do baterista contra Chorão. O cantor morreu dois dias depois.
Pinguim diz ao G1 que, quando o cantor morreu, eles estavam se reaproximando. “Eu estava tentando me reconciliar. Ele morava perto da minha casa. Ele ficava dando umas incertas e perguntava de mim. Ele tinha andado com dois skatistas e eles contaram que ele tinha me procurado”.
Ele diz que tinha uma boa relação com Chorão, elogia o cantor, mas afirma que as drogas podem ter exacerbado o comportamento agressivo. “Quando ele era do bem, era do bem; mas quando era do mal, eu não sei se por causa da droga, ficava mal mesmo”, lembra Pinguim.
O documentário tem cenas de ensaios em que Chorão briga com Pinguim por causa do andamento das músicas na frente dos colegas.
“Eu demorava para sacar, porque estava nervoso, tentando entender o que aconteceu. E no dia seguinte ele era extremamente amoroso. Eu ficava meio atônito. Eu não entendia se isso tirava ele do prumo, se de repente ele errava e falava que eu errava”, ele diz.
Como baterista, que conduz a banda, a relação ficava ainda mais sensível. “Eu era o trem, e se descarrilhar, vai desconduzir tudo.” E como era ser um trem com um Chorão em cima? “Muitos dias eram legais, no outro não. Eu ficava tentando entender o que era aquilo”, diz o músico.
Pinguim aponta algo que vários entrevistados do filme dizem: “Ele ajudava muitas pessoas. Se alguma coisa desse errado, isso desconcertava ele”, diz.
Ninguém sabia por que ou quando esse “lado b” de Chorão ia aparecer. “Não explodia só para mim, explodia para todo mundo: roadie, técnico, gente da banda, produtor. A gente tentava entender, e ele não falava muito, e não abria os problemas, E no dia seguinte estava tudo bem”, ele descreve.
“Ele era um cara amoroso, mas tinham todas as coisas que perturbavam a vida do cara”, Pinguim tenta definir.
O Charlie Brown Jr. tinha acabado de lançar seu primeiro disco, “Transpiração contínua prolongada”, em 1997. A “Bizz” (na época renomeada como “Showbizz”), fez uma nota positiva com título “Charlie casca-grossa”, apresentando Chorão aos leitores como skatista experiente, emotivo e fã de hardcore.
Em janeiro de 1998, Chorão entrou em outra reportagem sobre os planos de ídolos para o ano que viria. Animado, ele dizia que queria montar um selo e um evento para bandas novas. Em um trocadilho com o festival Lollapalooza, ele disse que queria virar o “lulupaloso, ou melhor, o choropaloso”.
A nota era positiva – e ainda por cima nem questionava aqueles planos megalomaníacos. Ninguém na revista entendeu a reação fora de tom. “Ele achou que era uma suprema ofensa. Ligou para a repórter e ameaçou ela de morte, basicamente”, conta ao G1 o então editor da “Showbizz”, o jornalista Pedro Só.
Pedro até hoje não sabe se Chorão achou ofensivo o trocadilho que o cantor mesmo criou. A nota não era assinada, e o editor pede hoje para não citar o nome da repórter. A decisão na época foi a seguinte: não reagir, mas também não falar mais com ele.
Nota da edição de janeiro de 1998 da revista ‘Showbizz’ sobre Chorão. O cantor ligou para a redação e ameaçou a repórter de morte por causa do texto — Foto: Reprodução
“Eu já não tinha grande simpatia pela banda. E falei: ele está ameaçando de morte, o que eu vou fazer? Nada, mas se conseguir viver sem ele, melhor para nós”, lembra o editor.
Nas seções de críticas, o Charlie Brown também não tinha muita vez na imprensa em geral. A imagem do “Chorão poeta”, que muitos fãs mais jovens reproduzem hoje, não existia. Muito menos o relato de um programador de rádio no novo documentário de que “ninguém cantava como Chorão”.
Outros artistas contemporâneos como Chico Science, Planet Hemp e Raimundos tinham trabalhos mais vistos como originais. O Charlie Brown fazia um skate rock que já era popular, e as resenhas não destacavam nenhum sinal especial de poesia nas letras diretas de Chorão.
De volta à “Bizz”, veio uma reviravolta que é a cara da vida do Chorão: em julho de 1999, a banda ganhou a enquete de banda do ano entre os leitores da revista. “Foi incontornável. Era prática de dar capa com a banda que ganhou. A gente foi atrás disso”, lembra Pedro Só.
“Teve uns dois ou três almoços de entendimento com gravadora, empresário, para selar uma paz com o Chorão”. Quando o próprio cantor apareceu nos almoços, o papo foi truncado. “Ele chegou atrasado, teve uma postura inicialmente hostil, mas depois foi melhorando”, conta Pedro.
Chorão topou, mas com exigências incomuns, como ter a foto de capa andando de skate feita por um amigo fotógrafo que não trabalhava com a revista. Pedro fez a maior parte da reportagem em uma viagem para Santos com o cantor. Deu certo, apesar dos riscos.
“Foi engraçado porque na volta, a gente descobriu que ele estava com o carro cheio de cocaína, não sei se pinos ou papéis. Estávamos nós três (Chorão, Pedro e uma assessora da gravadora). Escapamos de ser presos e perder nossos empregos”, ele lembra aos risos.
A capa falava sobre “como o skatista Chorão venceu no rock brasileiro falando a língua das ruas”. O texto reforçava a determinação do cantor, mas economizava outros elogios mais artísticos.
“Na época não era capaz de enxergar isso, mas ele tinha uma sagacidade de jovem urbano. Depois, até pelo que ele teve de sucesso, como bateu em várias gerações, tem que dar o braço a torcer que ele tinha esse talento. Fala com o povo e falou para várias gerações”, ele avalia hoje.